quinta-feira, 2 de novembro de 2017

Uma catuense “ilustrada”: a história de Anna Ribeiro de Góes Bittencourt (1843-1930)

Por Marcelo Souza Oliveira

Parte I
D. Anna Ribeirto de Góes Bittencourt
A primeira romancista baiana se considerava uma legítima mulher catuense. Ela era também uma senhora de engenho, pertencente a uma das famílias mais antigas e poderosas da Bahia no século XIX. Uma escritora reconhecida em sua época, Anna Ribeiro de Araújo Góes Bittencourt (1843-1930), transpôs inúmeras barreiras: aprendeu a ler aos onze anos, depois de enfrentar uma grave doença nos olhos; ousou expressar em público suas opiniões, algo que era incomum para as mulheres de sua época; publicou vários poemas, contos, e seis romances, além de inúmeros artigos em jornais e revistas de Salvador; e depois de tudo isso deixou escritas, para publicação póstuma, a biografia de seu avô e sua autobiografia.

É difícil imaginar o que significa para uma mulher do interior que viveu no tempo em que no Brasil ainda existiam escravos, sair do seio familiar para publicar obras literárias nos maiores jornais da Bahia. Mesmo pertencente a uma das famílias mais poderosas da época, não era comum uma mulher sair do espaço privado para o público em nenhum lugar do Império brasileiro naquele tempo. Estamos falando de um período que vai desde 1882, publicação de sua primeira obra literária, intitulada Anjos do perdão, até 1921, quando publicou Abigail, pelo jornal soteropolitano A Bahia. É quase quarenta anos de carreira literária, fato que se torna mais impressionante se considerarmos que a sua carreira como escritora começou quando ela já tinha 38 anos de idade, depois que seus três filhos já estavam todos criados.

As memórias que D. Anna escreveu por volta de 1822 – posteriormente intituladas – Os longos serões do campo foram publicadas por seus descendentes em 1992, e foi uma das biografias mais vendidas daquele ano aqui na Bahia. Além disso, esses escritos são tidos como uma das mais ricas e detalhadas narrativas sobre o cotidiano e costumes do Brasil Império, feita por uma brasileira. Por esse motivo, Os longos serões do campo são até hoje utilizados não só por pesquisadores baianos, mas de todo Brasil e até da Europa.

D. Anna viveu desde a sua mais tenra infância numa casa-grande, vendo da sua varanda uma imensa lavoura de cana cuidada pelos escravos, primeiro de propriedade do seu pai e depois do seu marido. No salão do Engenho Api [1] sua família recebia constantemente barões e políticos importantes do Império. Entre os seus parentes figuravam alguns deles, como o Barão de São Miguel, o Barão de Araujo Góes e, possivelmente, o Barão de Camaçari [2]. D. Anna era uma senhora de engenho “abolicionista”, um termo que parece contraditório, pois ao mesmo tempo em que achava que os homens escravizados por sua família e seu grupo social deveriam ser livres, dependia imensamente do trabalho [escravo] desses mesmos homens. Uma obra vasta e rica, principalmente por expressar e trasmitir os sentimentos de uma época em que a Bahia conheceu o auge e a decadência da cultura de cana-de-açúcar para exportação, fundada no trabalho escravista.
Trajetória literária e (re)produção da realidade


Anna Ribeiro de Araújo Góes Bittencourt foi a primeira romancista baiana, num período em que o cânone literário baiano e brasileiro era dominado por homens. Propôs-se a produzir textos ficcionais com o intuito de “orientar” suas conterrâneas nos caminhos da “moral” e dos “bons costumes”. Escreveu artigos para vários periódicos da época destacando-se o Almanaque de Lembranças Luso-brasileiro e a Paladina do Lar – O primeiro publicado em Portugal, a segunda em Salvador.
A obra romanesca de Anna Ribeiro é vasta e diversificada e está dividida e: A Filha de Jephté (1882) e Abigail (1921) – e romances profanos – O anjo do perdão (1885), Helena (1901), Lúcia (1903), Letícia (1908) e Suzana (Inédito). Anna Ribeiro também produziu um livro de memórias intitulado Longos Serões do Campo (1992). Produziu ainda aproximadamente seis contos, vários poemas, três hinos religiosos e dezessete artigos. A obra de Anna Ribeiro teve ampla circulação em jornais de Alagoinhas e de Salvador. Jornais como A Bahia, Jornal de Notícias, O monitor publicaram algumas de suas obras entre 1882 e 1921. Os contos e romances eram publicados diariamente como são exibidas hoje as novelas da TV.

A literatura de Anna Ribeiro tinha a função de “retratar” a realidade e de educar as moças da elite baiana ante a nova realidade que se apresentava para os senhores do açúcar. Eram sempre lições de moral influenciadas pela forte ideologia católica, a qual D. Anna se declarava como crente fervorosa. Assim a visão de Anna Ribeiro sobre aquela época era semelhante ao olhar que ela imprimiu nas memórias: a visão de uma senhora de engenho. Nas narrativas literárias dela os senhores e senhoras de engenho são sempre heróis ou vitimas. Os ex-escravos “rebeldes”, “ingratos”, ou considerados “dignos”, quando continuam se “dedicando” aos seus ex-senhores. O governo é visto como o “grande vilão da história”, por não compensar os senhores do Recôncavo, pelas perdas com a libertação dos cativos em 13 de maio de 1888. As moças em Anna Ribeiro devem sempre obediência ao marido e a igreja. Ela deve ser rainha do lar e lutar pela moral e pelos bons costumes. Por outro lado, a literatura dela retrata de maneira singular a o Recôncavo, em particular os engenhos do Catu, no final do século XIX. Em Violeta & Angélica, por exemplo, ela parece oferecer um panorama de um engenho, “parecido” com engenho Api:


Corria o ano de 1888.

Era um domingo. Na varanda de sua vivenda campestre, passeava o Sr. Alfredo Bastos, com ar triste e preocupado, em contradição com sua fisionomia, habitualmente calma e prazenteira [...].
De vez em quando parava sofrendo a vista em redor de sua propriedade rural, bem cuidada e florescente. Não era um engenho, mas uma fazenda onde cultiva de tudo, inclusive a cana, que era moída em um engenho vizinho. A casa de morada vasta e cômoda, sem ostentar construção, era confortável e alegre.

Ao lado havia uma casa tosca onde se via o aparelho próprio para fabrico da farinha de mandioca, depósito de cereais, de fumo, etc. Do outro lado, um curral, tendo num dos ângulos uma pequena casa para prender os bezerros, fazia supor pela vastidão, a grande quantidade de vacas que ai eram conduzidas para fornecer leite, essa primorosa alimentação, que tanta abundancia proporciona as casa campestres.

No fundo da vivenda, um vastíssimo pomar, repleto de laranjeiras e outras arvores frutíferas, promovia também a abundancia e regalo da família.
O que, pois, dava causa às apreensões do bom lavrador?
É que se dera o golpe de estado, abolindo a escravidão ao Brasil, e ele temia pelos resultados já apreciados, ver a sua propriedade cair em decadência, pela falta de braços, e sua família querida experimentar as privações a que não estava habituada [...].
Muito sono, passado a sesta em macia rede, foi nesse tempo abolido!... Muita fronte lisa foi então sulcada pelas rugas dos cuidados!...

Era preciso entrar na luta da vida [3].


Neste trecho, a autora descreve uma situação onde o senhor de engenho se encontra preocupado, por causa da abolição dos escravos, pois, sem os “braços” dos negros, não poderia manter a lavoura e conseqüentemente o padrão de vida de sua família. Como o personagem desse conto, vários outros foram mostrados na literatura de Anna Ribeiro, mostrando sempre o senhor de engenho, como alguém “bonzinho” e “trabalhador”.

Na literatura, Anna Ribeiro conta a história da decadência dos senhores catuenses, cuja ascensão ela contou nas memórias. Assim ela utiliza duas modalidades de escrita para descrever momentos diferentes de sua vida e da história. Nesse entreato, ela apresenta uma Catu que poucos imaginariam que um dia existiu. Ela eterniza na escrita uma época marcante na História do Brasil. Não pode negar que ela foi uma personalidade que merece realmente ser lembrada, por ter sido uma mulher que ousou entrar num mundo dominado pelos homens, como era a literatura naquele momento. Por ser aparentemente contraditória como “abolicionista escravocrata”. Por ter deixado registros utilizados por pesquisadores contemporâneos de vários lugares do Brasil e até da Europa [4].
Num ato que parece ter sido profético ela certa vez afirmou: “O romance não é mais uma fantasia de imaginação das damas, porém sim uma obra séria, cujos detalhes são documentados, e na qual os investigadores do século próximo irão encontrar escrita, dia a dia, a história do nosso século” [5]. E o tempo do “cumprimento” dessa “profecia” chegou. [6]



NOTAS:


[1] O Engenho Api foi comprado em 1855 do senhor Hermenegildo de Azevedo Monteiro, por Mathias de Araújo Góes e Pedro Ribeiro de Araújo, [pai e avô materno de Anna Ribeiro]. Em 1872, a antiga casa-grande foi abandonada e construída a atual, que sofreu várias reformas, mas ainda pertence à aos descendentes da família, situando-se nos arredores do distrito de Bela Flor, Catu-Ba. Bahia, (Secretaria da Indústria e Comercio. IPAC-BA – Inventário de proteção do acervo cultural: monumentos e sítios do Recôncavo, I Parte. 2ª edição, Salvador, 1982. Pp. 57-58).
[2] Os três Barões referidos, Barão de Araújo Góes (1809-1878) - incentivador direto da carreira literária de Anna Ribeiro, foi responsável pelo prefácio do Visconde de Taunay ao primeiro romance de D. Anna intitulado A filha de Jephté -, o Barão de Camaçari (1828-1919) e o Barão de São Miguel (1840-1936). Os dois últimos foram grandes senhores em Catu sendo que as regiões onde ficavam suas propriedades levam seus nomes até os dias de hoje.
[3] BITTENCOURT. Anna Ribeiro de Araújo Góis. Violeta e Angélica. Jornal de Notícias, Nov/1906.
[4] Figuram entre os pesquisadores que utilizaram os escritos de Anna Ribeiro como fonte de pesquisa Walter Fraga Filho, Kátia Mattoso, Marina Maluf entre vários outros. (FRAGA FILHO, Walter. Encruzilhadas da liberdade: histórias de escravos e libertos na Bahia (1879-1910). Campinas, SP: Editora da Unicamp, 2006. MATTOSO. Kátia M. de Queirós. Une comtesse de Segúr: Anna Ribeiro. Cahiers du Bresil contemporation, Paris, n.19. 1992. MALUF, Marina. Ruídos da memória. São Paulo: Siciliano, 1995, entre outros).
[5] BITTENCOURT, Anna Ribeiro de Góes. In: A Voz da Liga Católica das Senhoras Baianas. Bahia: Tipografia Beneditina. ano IV, set. 1916. n. 6. p. 91-93.
[6] Além das referências já citadas ver também: OLIVEIRA, Marcelo Souza. Memórias de uma senhora de engenho: lembranças e esquecimentos nos Longos Serões do Campo, de Anna Ribeiro. In: Patrimônio e Memória.  UNESP. FCLAs – CEDAP, v.4, n.1, São Paulo 2008. Disponível em: http://www.assis.unesp.br/cedap/patrimonio_e_memoria/patrimonio_e_memoria_v4.n1/Artigos/senhora_engenho.pdf, acesso em 6 de fevereiro de 2006, às 22: 37h.

Imagem: Foto da escritora Anna Ribeiro, aos 30 anos de idade, tirada no ano de 1973.

Um comentário:

  1. Quero perguntar se ela, mais precisamente o marido dela era parente da cantora Simone? Ambos são Bittencourt.

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